Karate é simplesmente uma técnica de combate? Não existe um método para ultrapassar o simples dualismo de ganhar ou perder? KARATE-DO.
Passaram muitos anos desde que o defunto Mestre Funakoshi introduziu o Karate-jitsu no Japão, que se desenvolveu muito até hoje. Mas até que ponto se desenvolveu como Do, quer dizer como disciplina espiritual?
Nesta ocasião realçamos o Shotokai, linha que sucedeu e desenvolve a técnica e a ideia que transmitiu o Mestre Funakoshi. Sobretudo o Mestre Egami que o sistematizou.
Vamos explicar o que procura o Shotokai.
SHIYO (1) ATÉ TOSO JITSU (2) SANTISSIMO
Nihon Karate-do Shotokai não é uma organização que conte com muitos membros, incluso existem pessoas que nem a conhecem. Alguns conhecem-no como um estilo que não pratica a competição, e que utiliza o punho de forma diferente (como o antecessor) que deu luz ao Shintai-do.
Mas sem dúvida é um estilo muito interessante por causa da sua ideia única, fora da orla de tendência desportiva.
Pelo seu nome imagina-se que tem a sua origem no Mestre Funakoshi.
Por volta do ano 1937, este mestre construiu o seu dojo em Mejiro, atribuindo-lhe o nome de Shotokan.
Depois sucedeu-lhe o seu filho mais velho Giei, o seu terceiro filho Gigo e Egami. O dojo Shotokan está actualmente situado em Shibaura, Minato-ku, Tóquio.
Recordarão a existência no Japão de uma organização maior, a Nihon – Karate – Kyokai (JKA), que teve o Mestre Funakoshi como criador. A anterior é uma escola que negou a competição, a posterior é uma que investigou a forma de fazer karate desportivo.
Conhece-se que o Mestre Funakoshi tinha a intenção de situar o karate dentro da educação física do povo, seguindo o modelo de Mestre Jigoro Kano do Judo. Quer dizer que dentro do karate que ele criou, existiam duas ideias, uma de carácter Budo e outra como método de Educação Física. Não vamos tocar neste ponto porque não é o objectivo deste articulo.
(1) Elevação da capacidade para chegar ao absoluto
(2) Método de combate
KARATE PARA ALÉM DO MÉTODO DE COMBATE
Quem desenvolveu a técnica e a ideia actual do Shotokai foi o defunto Mestre Egami.
Diz no seu livro Karate-do Nyumon: “O Roshi (Mestre Funakoshi) transmitiu o Karate-do não só como um método de combate, mas também como uma disciplina espiritual, e demonstrou-o. Mas como está a situação actual?”
Fala-se muito da importância da parte espiritual, na realidade quem faz muita competição só procura combater e ganhar.
Mestre Egami como o Mestre Funakoshi, nega a competição. “Antigamente geralmente compreendia-se o Shiai como Shi ni ai (Shi-morrer, Ai-mutuamente) devendo-se prosseguir até que um caia. No Japão essa era a verdadeira forma de Shiai. Imagino que se passou à actual forma de Shiai, devido à influência dos desportos ocidentais que tinham sido introduzidos no Japão. Se se quer procurar e investigar como Budo verdadeiro ou como Do, deve-se estar seguro de que não existe competição e procurar mais além do ponto de vida ou morte.”
“Estudar a fundo como um método de combate real e depois ir mais além da luta. (Chegar) a sentir com o corpo um estado de união entre si e o oponente. Creio que este é o trabalho de kumite.”
A ideia de Karate-do de Mestre Egami tem muitos elementos de Zen, assim como o Kendo antigo que se formou a partir da união de Ken-jitsu com o Zen. Por isso é quase impossível explicar a sua ideia com palavras, mas tentaremos apresentar a sua ideia através de seus episódios.
NÃO SE MATAR ENTRE SÍ, MAS VIVER MUTUAMENTE
Num episódio do seu livro “Karate-do para profissionais”, conta-nos que: Ao ver uns antigos companheiros, depois de não os ter visto durante alguns anos, um deles perguntou-lhe se ainda fazia Karate para procurar a forma de matar pessoas. Esta palavra estilo brincadeira causou-lhe espanto. E perguntou-se a si mesmo: É certo que no Karate para matar não existe diferença com os animais (seres irracionais)? No mundo dos animais é impossível evitar o confronto, mas os humanos que têm a capacidade de ser subjectivos não podem superar a mentalidade dos animais? Não existe Karate-do ultrapassando o simples dualismo de ganhar ou perder?
Mestre Egami encontrou a resposta na ideia de um grande samurai da primeira época de Edo, Sekiun Harigaya.
Sekiun falava de Aiuchi, como um estado supremo não para se danificar entre si, mas para anular mutuamente a competitividade por intermédio da Katana: Não se matar entre si, mas viver mutuamente, A este estado chamou: “Ainuke”.
Antes de Sekiun o principio esotérico do Ken era Aiuchi como decisão de negar-se a si próprio e a morte, mas isto era uma forma de ganhar o combate, visto abandonar-se a ansiedade de sobreviver.
“Ter essa decisão, por conseguinte procurar ganhar, não supera o dualismo” menciona Sekiun. Para chegar a Ainuke, tem de se abandonar o desejo de ganhar, a decisão de morrer e todo o pensamento. É necessário actuar em conformidade com a natureza, É uma característica muito Zen.
Mestre Egami disse: “Hissho ( a decisão de ganhar sem falta) e Hissatsu (a decisão de matar sem falta) são ideias do principiante que ainda não saiu da primeira etapa. Quando compreender e sentir com o corpo que não perder não quer dizer ganhar, então poderá sair da primeira etapa. Ainda que se avance num mundo de ganhar e perder, não há diferença, é também o mundo de ganhar ou perder, ganhando o ser mais forte ao mais débil como é natural. Mas não existe nem mais forte nem mais débil, o método para conviver e harmonizar todo o mundo é a finalidade do Karate-do que praticamos.”
O Karate-do de Mestre Egami dirige-se ao estado de Ainuke.
O KARATE É VERDADEIRAMENTE HISSATSU-KEN?
Sabe-se que o Shotokai não pratica a competição (jiyu-ippon-kumite sim). Vamos apresentar mais concretamente a sua ideia, incluindo a ideia de combate. No Shiai de Kenjitsu, perder quer dizer morrer, logo o treino era então uma forma de aumentar a capacidade de decidir-se a morrer. “Um método para encontrar o grande eu (ego do universo) abandonando o mini eu (próprio ego).” Comenta-se no livro de Ken e Zen de Sogen Omori.
Como será se esta ideia é aplicada ao karate?
Mestre Egami informa o seguinte no livro de karate-do para profissionais (ainda que seja uma surpresa para os karatekas).
“Durante anos assaltava-me a dúvida se o tsuki era verdadeiramente eficaz...a maioria dos karatekas acreditavam cegamente no antigo ditado “um tsuki tem eficácia para matar uma pessoa” ou pelo menos tentavam acreditar guardando a sua insegurança...eu deixava que toda a gente de todo o tipo me golpeassem o abdómen, a cara ou a boca do estômago (umas dez mil vezes)... e o resultado era lastimoso. Dava-me conta de que os golpes dos karatekas eram os menos eficazes, ainda por cima o facto que os dos karatekas que treinavam há mais tempo serem piores...surpreendeu-me. Que se passa? Porquê? Comecei de novo, procurando como era o verdadeiro tsuki, como e quando podia realizá-lo.
Existe um episódio desconhecido. Durante a Segunda Guerra Mundial, como o Mestre Egami era um dos discípulos mais altos da Escola Funakoshi, o exército japonês ordenou-lhe que desse aulas aos militares para os ensinar a matar, Esta experiência é muito persuasiva em relação ao que disse anteriormente relativamente à dúvida sobre o tsuki.
De qualquer maneira conseguir a eficácia para poder matar uma pessoa com um golpe (Bujitsu) era a condição necessária para chegar ao Budo.
Diz o Mestre Egami: “Se um tsuki não é eficaz, não é necessário defendê-lo seriamente. Não são necessárias técnicas. Quando um tsuki é eficaz então é necessário defendê-lo, desviar seriamente, aí nasce a técnica para responder e aí começa o verdadeiro Keiko.
O CAMINHO PARA SEI (O SER SANTO)
Como é o karate actual do Shotokai?
Mestre Egami disse: “Antigamente o treino de karate era para se tornar rígido. Dei-me conta do equívoco que a rigidez era força...Reconheci o erro , e mudei totalmente a ideia de endurecer pela ideia de relaxar e flexibilizar, procurando o estado natural do espírito e da forma...Compreendi o significado da palavra que Mestre Funakoshi sempre dizia: “Não ir contra a natureza” (Karate-do para profissionais).”
Mestre Egami pensou:
Pôr todos os movimentos nas mãos da natureza e não ir contra o movimento do oponente nem resistir, mas mover-se em conjunto. Com este estado de união de si próprio e dos outros podemos chegar ao Budo maravilhoso de viver mutuamente, deixando o Bujitsu do simples dualismo.
A sumidade de Ken de Sekiun era Jyuwa mubyoshi (receber a pessoa suavemente, sossegadamente, sem ritmo), e definiu esse estado supremo de Kokoro (espírito), Sei (Santo). O Mestre Egami tinha a mesma ideia que ele.
Abandonando a ideia de como bater os adversários, como sobreviver, encontrou que o karate-do procura chegar a Sei.
Ele tem razão ao negar absolutamente a competição, como o Mestre Funakoshi. Para ser desporto (controlado com hikite e hikiashi, ou estilo full contact), necessita de regulamentos para evitar o perigo.
No mundo do dualismo onde nem sequer cabe a ideia de decidir-se a morrer, nem a abandonar o ego, perde-se a base da existência como Budo.
Mestre Egami, que criou a base técnica do Shotokai de hoje em dia, pensou que o verdadeiro Hissatsuken (golpe eficaz) é a condição necessária para passar de karate-jitsu a karate-do. Como era o Hissatsuken que ele imaginou? Como o criou?
Nesta ocasião vamos falar do Tsuki, uma das características do Shotokai.
O REGRESSO AO TSUKI ORIGINAL
Para conhecer mais concretamente as técnicas do Shotokai, visitámos o Tenshinkan-dojo (Motosumiyoshi-dojo). O director Ito Shihan contou-nos o seguinte:
“Mestre Egami, deixando o seu punho encostado à minha barriga, golpeou-me espontaneamente. Apesar da ligeireza do seu golpe, a sua força penetrou até às costas. Era um tsuki estranho. O Mestre Egami dizia rindo-se, que o tsuki não necessita de força nem de trajecto. Era algo impressionante.”
É muito parecido com a forma de golpear do Kempo Chinês do norte. Dizem que desenvolveram uma forma muito particular de golpear o oponente sem a utilização da força muscular partindo de uma curta distância ou encostado ao outro. Foi muito inesperado que se estudasse este tipo de técnicas dentro do Shotokai que desenvolve a ideia do Mestre Funakoshi. Já há muito tempo que existia entre os karatekas mais avançados o comentário da existência de uma forma golpear em karate que podia danificar os órgãos internos sem ferir a superfície do corpo, à qual chamavam “Uraate.”
Será este tipo de técnica que procurava o Mestre Egami?
O TSUKI NASCIDO DO ESTUDO DO CORPO
Como nasceu a técnica de tsuki do Mestre Egami que não se pode imaginar com o sentido comum?
Para falar disso, temos de mencionar um grupo de experiência o “Rakutenkai”. Composto por voluntários de entre os discípulos mais avançados do Mestre Egami. Dizem que se realizavam continuamente treinos muito duros chegando próximo da loucura, colaborando com ele no trabalho para construir as técnicas de Mestre Egami. Esse grupo tinha como dirigente o Sr. Aoki (criador do Shintai-do) que era Shihan-dai (representante do Shihan) em Tokyu-Dojo.
Ainda hoje em dia é tema de conversa entre os karatekas a dureza desse treino que tinha como finalidade descobrir através do corpo o seu estado extremo.
Ito Shihan era também um dos membros do Rakutenkai.
Segundo ele a aula no dojo terminava às nove e meia da noite, os membros do Rakutenkai voltavam a suas casas para depois se reunirem à meia-noite em casa do Sr. Aoki, e no parque próximo dela treinavam até ao romper do dia. Este treino durou dias e dias a fim de descobrir a forma de movimento, uma vez deixada toda a tensão muscular. Para isso repetiam horas e horas tsuki e geri. Chegando incluso algumas vezes a treinar deixando de comer durante uma semana.
Para realizar um tsuki forte, é preciso ir buscar inteiramente toda a energia para projectá-la. E então estudavam: que acontece se se encolhe o corpo humano até ao último extremo (estado máximo de retracção), que acontece se se abre até ao último extremo (estado máximo de expansão)?
Este estudo do corpo humano serviu para criar o Shintai-do, mas simultaneamente foi um trabalho básico muito importante para construir a técnica do Shotokai.
Uma das conclusões a que chegaram foi: “O corpo humano originalmente é flexível e vivo, não como uma estátua”.
Logo um Hissatsuken (golpe eficaz) tem que ser um tsuki capaz de afectar o corpo no estado anteriormente descrito.
TRÊS MIL ANOS DE HISTÓRIA VIVIDOS NUMA EXPERIÊNCIA PESSOAL
Dissemos anteriormente que a técnica do tsuki de Shotokai faz-nos recordar a do Kung-fu do norte. O estilo norte e o estilo sul dos quais evolucionaria o Karate têm conceitos diferentes acerca do corpo humano. O primeiro considera o corpo humano como uma bolsa que interiormente está cheia de água, e o segundo considera-o como uma coisa sólida. No segundo, fortaleciam-se e endureciam-se os nós dos dedos, aumentando a capacidade de quebrar as coisas sólidas.
Mas Mestre Egami e seus discípulos mais avançados, através da sua experiência (anteriormente mencionada), encontraram a eficácia golpeando do seguinte modo:
1/ Abandonar a tensão dos ombros, dos cotovelos, dos pulsos e flexibilizar todo o corpo.
2/ Com este estado flexível do corpo, deslocar-se junto com o punho concentrando-se na anca, e golpear concentrando todo o peso do corpo no ken.
3/ Sem cortar a respiração, mover-se com naturalidade seguindo o movimento do corpo.
4/ O ken, à medida que vai girando concentra a força num ponto (a segunda articulação do dedo grande).
5/ No caso de se golpear em zenkutzu-dachi deixar profundamente o peso na perna dianteira, não importando se devido à rapidez do movimento se traz o pé traseiro para a frente.
etc..... (retirado de Karate-do Nyumon).
Estes pontos importantes coincidem com os do Kung-fu do norte no qual se dá importância aos seguintes pontos:
- A força deve destroçar os órgãos internos.
- Abandonar a tensão dos ombros e dos cotovelos, baixando o peso do corpo.
- Sincronizar todos os movimentos do corpo.
Também se diz sobre unsoku, que se aproxima o pé traseiro ao pé dianteiro na deslocação e também se utiliza frequentemente Ippon-ken (uma forma de golpe de mão que procura menos superfície, normalmente uma articulação dos dedos) para golpear os pontos vitais do corpo.
Sabe-se que o Karate-jitsu de Okinawa tinha muita influência do Kung-fu do sul, mas continuando a aprofundar dizem que a sua origem remonta ao Kung-fu do norte.
Esta história de grande escala que viveu a técnica do Karate, podemos dizer que o Mestre Egami a fez numa só vida.
COMO É O TSUKI DO KARATE ORIGINAL?
O Mestre Egami diz no seu livro que chegou a realizar um tsuki em que a sua força era capaz de atravessar um corpo com almofadas apoiadas nele.
Isso não é força muscular mas sim Ki.
Diz Ito Shihan e explica: “A técnica muscular, impede o desenvolvimento do Ki. Há que encontrar um caminho para que o Ki passe, abandonando a tensão muscular, mas isso só não basta. Há que arremessar fortemente o Ki, do interior para o exterior com a consciência. Por conseguinte dentro da trajectória do tsuki está matizada a contracção e expansão do corpo. Em Shotokai considera-se bom o tsuki que sai muito ligeiro e cuja força penetra até ao outro lado do corpo, não como um tsuki que se imagina uma coisa sólida golpeando a superfície do objectivo.”
Ito Shihan, demonstrou-nos o tsuki. Indubitavelmente é diferente dos outros estilos. Aparentemente é um movimento muito suave, mas com a impressão de ser muito pesado. É inexplicável com o conceito de tsuki no qual se dá importância ao kime (nos outros estilos o kime é a contracção muscular).
Antes de voltarmos à pergunta do tsuki original é interessante estudar a seguinte matéria. No ano de 1927, quando o Mestre Funakoshi fez uma demonstração no Japão, um jornalista do periódico (Tokyo nichi nichi Shinbun) perguntou-lhe o que era o Karate e o Mestre respondeu-lhe:
“O Karate é uma técnica com a qual um indivíduo se pode defender com as mãos vazias sem necessidade de se armar, podendo bater um oponente com um golpe que lhe pode causar a morte produzindo danos nos órgãos interiores sem ferir nem a pele nem os músculos.”
É muito diferente da imagem do Karate que fortalece os punhos com a makiwara e faz quebras de tábuas.
Se o tsuki anteriormente dito era o que procurava Mestre Funakoshi, o tsuki do Mestre Egami, o do Shotokai é o que segue e desenvolve a linha de Mestre Funakoshi.
Boletim Shotokai Japão
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